Dia 1 ao 15 - 24/3/2015 a 7/4/2015
De: Ourinhos-SP, Brasil
Para: Dourados-MS, Brasil
Gastos até agora: R$543,00
Gastos por dia: R$36,20
Distância pedalada até agora: 332km
Distância percorrida de carona até agora: 250km
Furos de pneu até agora: 1
Mapa 01 - De Ourinhos/ SP à Dourados/ MS
Já se foram 15 dias de viagem do Projeto Ciclos, temos várias coisas para contar.
Depois de um ano e meio sonhando e planejando o Projeto juntos, iniciamos nossa viagem no dia 24 de março, como planejado.
Conseguimos montar as bicicletas com os alforjes e toda a bagagem apenas na véspera da partida, e tive um pouco de problemas para montar meus alforjes traseiros. Nada que um jeitinho brasileiro, 50cm de velcro e a ajuda da Marcela e de meu pai não resolvessem, bicicletas prontas.
Nos sentindo felizes e cheios de esperança, às 6 horas da manhã em ponto, com o sol ainda por nascer, estávamos saindo do condomínio onde vivem meus pais… com eles nos seguindo de carro. Logo na saída Carlos, o jornalista da revista Atual, que virou nosso amigo nos ultimos 10 dias, estava lá nos esperando para nos dar um abraço forte e um “até logo“. Uma parte de um grupo de ciclistas de Ourinhos, os Ourobikers, havia combinado de pedalar conosco até a saída da cidade, mas ninguém apareceu.
Antes de nosso odômetro marcar 1km de percurso, o primeiro acidente da viagem aconteceu: uma das três garrafinhas de água que Marcela levava não estava bem presa na bicicleta e caiu na rua, estourando logo em seguida, quando passei por cima dela com a roda da frente de minha bicicleta. Foi um pequeno perigo, mas ninguém caiu.
Após uma hora de pedalada chegamos ao Sukim do Japonês, na rodovia Raposo Tavares (SP-270), ponto a partir do qual seguiríamos a viagem por nossa conta. Eu tinha receio de ficar com o “coração apertado“ nesse momento de despedida de meus pais, porém esse medo não se justificou, e a despedida foi tranquila, sem lágrimas de nenhum lado. Despedidas feitas, começamos a pedalar, e por essas “coincidências“, ainda fomos encontrados na estrada pelo meu ex-professor de Kung-fu, o Marrera, que nos deixou dois abraços cheios de energias positivas!!
Planejávamos parar em Palmital, a cerca de 40km de Ourinhos, mas, quando estávamos no trevo para entrar na cidade, a Marcela olhou pra mim e disse com os olhos: “vamos continuar“! Era o que eu queria ouvir, e continuamos até Assis. Depois de 70km pedalados avistamos o posto da polícia rodoviária, local sugerido por Flávio (Ourobikers) e por seu amigo Miranda para passarmos a noite. Marcela conversou com o policial que tinha a mais alta patente ali, e ele, muito gentilmente, nos permitiu armar a barraca sob grandes árvores no fundo do posto, e ainda nos deu dois coletes refletivos, itens que viraram parte de nossa indumentária para pedalar. Montamos nossa barraca, tomamos banho, preparamos ervilhas e tapioca em nosso fogareiro, conversamos com alguns policiais curiosos pela nossa história, e também com um jornalista de uma rádio local (rádio Difusora de Assis) que estava por ali, e dormimos nossa primeira noite de viagem num ótimo clima!!
Acampamento na Policia Rodoviária Federal de Assis/ SP
Despertamos 5:30 no segundo dia, mas ainda pegando o ritmo para desmontar e montar as bagagens, começamos a pedalar apenas às 7:30. Dormimos bem durante a noite, nossos isolantes térmicos e travesseiros infláveis deixaram tudo mais confortável. Continuamos nossa viagem pela SP-270, sempre com bom acostamento. A partir dos 30km rodados Marcela começou a sentir dor em seu joelho esquerdo, e 5km depois encontramos o Rancho da Pamonha, um restaurante rústico na beira da Estrada, e comida caseira. Lá conversamos com dois casais que estavam viajando e com um caminhoneiro que nos disse que é muito bom poder realizar um sonho. É assim que nos sentimos, realizando nosso sonho compartilhado. O terreno era bonito, com bastante espaço verde. Era o momento de eu dominar um pouco mais minha timidez, pedindo para acamparmos por ali, para descansarmos e não forçarmos o joelho da Marcela, pois teríamos um longo trecho sem postos para paradas.
Antes de começarmos esta viagem, fizemos oito pequenas viagens durante dois anos, e sempre que necessitamos, fomos auxiliados por outras pessoas. Viajar de bicicleta é ótimo para treinar a confiança nas pessoas, o que nem sempre parece fácil, principalmente se nos pautarmos na “realidade“ que diariamente INVADE nossas casas, levada principalmente pelas emissoras de TV; uma realidade de tragédia, mortes e corrupção. Depois que começamos a viajar de bicicleta, fomos defrontados com uma outra realidade, que é a regra, e não a exceção.
Clóvis, proprietário do lugar, nos surpreendeu com tanta simpatia e abertura, nos permitindo ficar em qualquer lugar que quiséssemos no terreno, oferecendo inclusive sua casa para passarmos a noite, sem que ele estivesse nela, pois sairia para uma festa. Preferimos ficar na barraca, pois ela já estava montada sobre um chão de tijolos, com um pouco de criatividade e com a ajuda de nossas bicicletas para mantê-la esticada. Além disso, de tardezinha Clóvis nos deu duas grandes marmitas para jantarmos. Essa seria a primeira vez que receberíamos alimento na viagem. Comemos uma das marmitas e guardamos a outra para o café-da-manhã do dia seguinte.
A noite foi tranquila, com exceção dos dois cachorros filhotes do Clóvis que resolveram brincar pulando na barraca de madrugada. Saímos às 7:30, e vimos que o sereno havia deixado sua marca, molhando a barraca por fora. A partir deste dia resolvemos sair sem tomar café-da-manhã, para aproveitarmos melhor o período de sol menos intenso para pedalar; combinamos de tomarmos café-da-manhã após uma hora de pedalada. Porém, antes de completarmos este tempo, cruzamos com um andarilho por quem já havíamos passado no dia anterior, na beira da rodovia. Marcela, que sempre vai à frente, ditando o ritmo das pedaladas, parou para conversar com ele e lhe ofereceu a marmita. Ele aceitou, e assim continuamos nossas caminho, parando logo à frente para o café-da-manhã com banana, goiabada e frutas secas.
Andarilho, encontramos com ele em dois momentos da viagem.
Neste dia pedalamos 44km, quando Marcela decidiu parar novamente por causa das dores no joelho, na entrada de uma fazenda de cana-de-açúcar, que era parte da paisagem de nosso trajeto desde o primeiro dia de viagem. Nossa estratégia era pedir carona até a cidade de Regente Feijó, próxima cidade, se não conseguíssemos, pediríamos para acampar numas casas que haviam ali perto, ou na fazenda. Mas isso não foi necessário, pois 30 minutos depois de pararmos, apareceu um caminhão reboque da concessionária que cuidava da rodovia, que nos levou, junto com as bicicletas, até a cidade. Lá, tentamos acampar na igreja matriz, mas não nos permitiram; então buscamos um hotel simples, onde passamos a noite, e aproveitamos para nos abastecer de comida, lavar a roupa e entrar na internet.
Dona Maria e Sr. Telé nos receberam em seu rancho após 56km pedalados no dia seguinte, no início com um pouco de desconfiança, mas com um pouco de conversa abriram as portas de sua casa para nós, com muito carinho. Eles nos deram um teto para passarmos a noite, café com pão, banho quente, e muita prosa. Ficamos conversando até as sete da noite sobre suas experiências de vida e sobre a viagem, enquanto seu neto, João Pedro, houvia tudo com muito interesse.
Nos despertamos às 5 da manhã, e vimos que a Dona Maria havia preparado café com pão para nós. Comemos, agradecemos com alegria todo o carinho dispensado, e partimos levando conosco uma última surpresa: um pão de casa que ela havia feito na noite anterior! 12km depois, num posto de combustível, vi que meu pneu estava furado, o primeiro furo da viagem! Na hora de trocar o pneu faltou uma chave de boca, que foi emprestada no posto. Além disso, uma porca do eixo traseiro estava espanada. Resultado: uma hora e meia para trocar o pneu. O bom é que não sou um mecânico da Formula 1, senão estaria despedido. Rodamos 33km e paramos num restaurante na beira da estrada, antes de Teodoro Sampaio. Marcela sentia dores novamente no joelho, e resolvemos pedir carona, mas desta vez sem sucesso. Então pedimos para passar a noite no terreno do restaurante. Sr. Cido, dono do restaurante, além de nos ceder um espaço para montar a barraca, com banheiro, nos deu comida de graça, e quatro ovos, que cozinhamos e fizemos nosso delicioso jantar, sentados ao lado de um pasto de bois, que nos olhavam com curiosidade. O restaurante era bem movimentado e, enquanto estávamos sentados na sua frente, com as bicicletas ali perto, vários clientes vieram falar conosco com curiosidade, os quais respondíamos com disposição. Em cerca de uma hora ali sentados ganhamos muitos sorrisos, paçocas e uma doação de 20 reais. Nesse dia houve a Hora do Planeta, e nós participamos do evento, apagando nossas luzes a partir das 20:30.
Família da D. Maria! Nos acolheu com muito carinho.
Os próximos três dias passamos em Teodoro Sampaio. Lá chegando, buscamos um lugar para ficar nos bombeiros, que nos indicaram o estádio municipal, cujo zelador nos indicou o Clube Taquaruçú. Seu diretor, Fabrício, e o segurança, Ricardo, foram muito atenciosos conosco. Mais uma vez ganhamos comida e pudemos usar internet. De noite dormimos numa sala que era a antiga sauna do clube, de onde pudemos ver uma forte chuva cair durante a noite enquanto estávamos ali, confortáveis e protegidos. No clube, pesamos nossas bagagens pela primeira vez, e chegamos nos valores de 15Kg para a Marcela e 30Kg para mim, sem contar a água, o que é um valor baixo quando comparado com outros cicloturistas que fizeram viagens longas como a nossa. No outro dia fomos a bicicletaria para substituir as porcas do eixo traseiro, que, na verdade, não estavam espanadas, mas eram de baixa qualidade. O dono da bicicletaria trocou-as para nós sem cobrar nada. Depois ainda fomos surpreendidos por dois ciclistas da cidade, no centro, que nos presentearam com duas camisetas de um evento local de ciclismo e a chave de boca que estava faltando em nosso kit de reparos. Maravilha!!
Seguimos para a sede do Parque Estadual Morro do Diabo, localizado a cerca de 10km do centro de Teodoro Sampaio. O parque é uma reserva da Mata Atlântica, a maior do interior do estado de São Paulo, mesmo sendo drasticamente reduzida desde 1940, quando contava com 300 mil hectares. Hoje o “desenvolvimento“ chegou e a região é dominada por fazendas, principalmente de cana-de-açúcar, que ocupa em todo o estado uma área de aproximadamente 4,5 milhões de hectares (segundo UNICA), enquanto a somatória de áreas protegidas do estado é de aproximadamente 790 mil hectares (segundo a Fundação Florestal). A última pesquisa realizada no parque, há cerca de 5 anos, concluiu que ele comporta uma população estimada de 30 a 35 onças, o suficiente para encher a Marcela de medo. Cada momento de cruzar a entrada da sede do Parque, cerca de 2km cercados de mata de ambos os lados era um momento de tensão para ela, que aumentava o ritmo de suas pedaladas, e de diversão para mim. No parque, guiados por Flávio, fizemos a trilha que subia até o topo do Morro do Diabo juntos com um grupo de alunos do 9o ano, um morro com 250 metros de altura, que se destaca como única elevação numa região essencialmente plana. O visual lá de cima é lindo, podemos ver por muitos quilômetros à frente, inclusive a estrada que passa pelo meio do parque, o que já causou a morte de muitos animais por atropelamento (inclusive onças), três morros que estão a cerca de 40km de distância, e a linha divisória entre a unidade de conservação e as plantações de cana-de-açúcar. Até onde compensa derrubar a floresta nativa para plantar cana? Quem ganha com isso? Quem perde? É possível associar “desenvolvimento“ e florestas? Depois da trilha, calibramos os pneus num posto e vimos que estavam com a metade da pressão necessária, o que certamente diminuiu nosso rendimento nas pedaladas. Atenção!!
Hospedaria do Parque Estadual Morro do diabo. Teodoro Sampaio/SP.
Saindo do Parque, escoltados por dois guardas-parque, para a tranquilidade da Marcela, seguimos nosso destino, pedalando para Euclides da Cunha Paulista há cerca de 55km de distância. Parando para o café-da-manhã, na estrada que corta o Parque, escutamos um barulho na mata… seria a onça? Não ficamos por muito tempo ali, seguimos viagem bem lentamente, descendo da bicicleta nas maiores subidas. Chegando no trevo para entrar na cidade de Euclides da Cunha, por volta do meio-dia, resolvemos tentar uma carona até Primavera, cidade onde tínhamos um contato para nos hospedar. Esperamos menos de uma hora por uma carona, que veio num caminhão frigorífico grande, que nos levou bem rápido pelos 40km que nos separavam de Primavera, e lá chegamos à uma da tarde e um minuto, no dia um de abril. Quem nos recebeu foi Edlaine, Washington e sua família, amigos de minha tia. Foram super simpáticos conosco, nos fizeram sentirmos em casa, e ainda nos levaram para passear no Balneário de Rosana às margens do Rio Paraná, que faz a divisa natural entre o estado de São Paulo e Mato Grosso do Sul, com suas águas escuras e pequenas ilhas cheias de florestas.
Saindo de Primavera pedalamos por cerca de 2km sobre a barragem da usina hidrelétrica de Primavera (no Rio Paraná) e entramos no estado de Mato Grosso do Sul, onde pedalamos por cerca de 10km na parte mais baixa de um aterro de aproximadamente 20m de altura, que segura a água da represa. Nos sentimos pequenos diante de tanta água. Um pouco à frente passamos pelo posto fiscal, que fiscaliza as mercadorias que entram e saem do estado. Sabendo que a estrada a partir dali poderia ficar perigosa, por falta de acostamentos e intenso tráfego de caminhões, mais uma vez pegamos carona, desta vez com José, num caminhão reboque onde subimos nossas bicicletas sem tirar nenhuma bagagem. 50Km depois chegamos à cidade de Nova Andradina, ainda no período da manhã. Para não chegarmos tão cedo na casa de Rita, mais um contato obtido de amigos, buscamos uma farmácia para pesar novamente nossas bagagens e confirmamos os valores anteriores. Depois de pesadas as bagagens, fomos à casa de Rita, e antes de entrarmos fomos entrevistados por uma jornalista da rádio Excelsior FM que estava ali perto e nos viu com as bicicletas.
Partimos em direção a Ivinhema na manhã seguinte, depois de um delicioso café-da-manhã com direito a pão de queijo, para o prazer da Marcela, e suco de laranja, porém, após 20km percorridos paramos pois ela estava novamente sentindo dores no joelho. Me senti frustrado, já que estava cheio de energia para pedalar, e a Marcela ficou triste pois também queria seguir na bicicleta. Naquele momento tomamos uma decisão: avançarmos o máximo possível até Dourados de carona, que estava a 170km de distância, pois nessa cidade ficaríamos algumas semanas na casa de nossa amiga Karin, e usaríamos esse tempo para recuperar o joelho da Marcela. Uma hora e meia depois de pararmos, passou um caminhão de mudanças ano 79 fazendo uma ultrapassagem enquanto estendíamos nossos dedões no gesto típico para pedir carona. Nossa surpresa foi ver ele terminando a ultrapassagem, entrar no acostamento lá na frente e retornar para onde estávamos, enquanto o motorista nos perguntava “para onde vão?“. Ele estava indo para Dourados pegar uma mudança para levar para Minas Gerais e nos levou até lá com ele. Seu nome era Sr. Wilson, com seus 60 anos aproximadamente, um divulgador da “religião“ espírita, que aproveitava suas viagens pelo Brasil para presentear pessoas com o livro “O Evangelho Segundo o Espiritismo“. Isso nos pareceu bem legal, o que não era legal era ele conversar conosco sem olhar para frente, fazendo isso inclusive durante uma ultrapasagem, enquanto vinha outro caminhão no sentido contrário. A Marcela veio fazendo orações durante todo o trajeto, houve uma tensão por nossa parte. Agora damos risada disso, enquanto narramos a carona para amigos. Esta noite passamos num hotel familiar simples, para não chegarmos na casa de nossa amiga sem avisar. Lhe enviamos uma mensagem pela internet dizendo que já estávamos na cidade, e ela apareceu no hotel de surpresa algumas horas depois, enquanto comíamos nossa refeição: macarrão com queijo e amendoim, e um pouco de lentilhas.
No dia 4 de abril já fomos para a casa da família da Karin, que nos recebeu com muitos sorrisos e carinho, e onde permanecemos até o fechamento deste primeiro diário de bordo, no dia 7 de abril. Ali passamos a Páscoa, quando a família se reuniu, nos enchendo de perguntas sobre a viagem, sendo que não tínhamos respostas para todas, o que foi ótimo, pois nos proporcionou algumas reflexões. Nesses dias também começamos a organizar a palestra sobre o Projeto Ciclos na faculdade Unigran, e o curso que facilitaríamos numa chácara na cidade, além de irmos até o jornal O Progresso para uma reportagem sobre o Projeto Ciclos, e também aproveitamos para visitarmos uma fisioterapeuta para ver como estava o joelho da Marcela. No dia 7 de abril ainda conseguimos uma consulta de fisioterapia pelo SUS, mas as recomendações dessa profissional foram bem diferentes das recomendações da primeira. O mais gostoso foi poder levar a Marcela na fisioterapia na garupa da bicicleta, sentindo alegria por poder utilizá-la como meio de transporte na cidade. Esperamos que em algumas semanas o joelho da Marcela esteja recuperado, com a ajuda das sessões de fisioterapia, para continuarmos nossa viagem pela América Latina, que está ótima!!!
Fisioterapia.