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  • Foto do escritorOs Antípodas

Competição na natureza?

Atualizado: 7 de abr. de 2020


Este texto escrevi em 2012, depois de participar de uma parte de um curso sobre agroflorestas, com Ernst Gotsch, no TIBÁ.

“Julgamo-nos muito inteligentes. Realmente somos, se observarmos desde o prisma de que somos os únicos animais que cavam sua própria cova” – Ernst Gotsch.

Esta foi uma frase dita por Ernst Gotsch durante um curso sobre agroflorestas ministrado no TIBÁ (instituto de Tecnologia Intuitiva e Bioarquitetura) em outubro de 2012. Ela versa sobre a realidade que vivemos de consumo desenfreado, exaurindo os recursos naturais do planeta, iludindo-nos com o “ter”, enquanto o mundo caminha para um colapso ambiental sem precedentes na história.

Com esta “blogada” pretendo compartilhar as idéias de Ernst, um suíço que estudou e trabalhou com melhoramento vegetal até a década de 1970 em sua terra natal, viveu na Costa Rica e depois se instalou no Brasil, na Bahia, onde vive até hoje, 2012. É dono de uma terra de cerca de 500ha (hectares), a qual adquiriu totalmente improdutiva e degradada, após apostar com um amigo que conseguiria recuperar a área, transformá-la numa floresta e viver de seus produtos. Isso mesmo, uma aposta. Após 15 anos, a propriedade havia sido totalmente revegetada, inclusive com retorno da fauna local. A técnica utilizada para a revegetação foi o sistema agroflorestal (SAF), por meio do qual ele produz cacau de alta qualidade, além de comida para sua família e outros produtos, tudo sem usar agroquímicos, claro.

Competição ou cooperação? O que move as interações entre as espécies no nosso mundo? A competição é inerente e instintiva nos seres vivos, como normalmente se afirma na mídia (jornais, revistas, rádios, etc.) e nas aulas de biologia/economia nas universidades? Ou isso seria apenas uma forma de justificar o capitalismo como modo de produção? Para refletir sobre isso, escrevo a seguir duas histórias narradas pelo suíço.

Ernst Gotsch, no centro da foto, durante curso no TIBÁ

História um: Ratos e cobra

Imagine alguns ratos num espaço delimitado e grande o suficiente, com água e alimentação disponíveis em boa quantidade. Nesse mesmo espaço é colocada uma cobra, que também recebe alimento suficiente. Apesar de dividirem o mesmo espaço, a cobra não tentará comer nenhum rato; porém, se propositadamente é diminuída a quantidade de alimento ou de água disponíveis aos ratos, algo ocorrerá: após um tempo, o rato que está mais faminto (ou sedento) se deslocará em direção à cobra e “pedirá” para ser comido, para acabar com seu sofrimento, e a cobra o comerá.

História dois: Gazelas e leões

Trabalhando como consultor internacional na instalação de poços, Ernst foi visitar uma aldeia na Namíbia, África, para uma reunião com os líderes locais. Lá chegando, ficou contrariado ao ver que ninguém estava esperando-o para a reunião e que todos estavam em festa. Imagine só um suíço, com todo aquele rigor com horários e responsabilidades, chegando para uma reunião e ninguém o está esperando. Sem muita paciência, perguntou qual era o motivo da festa a um homem da comunidade. O homem fez uma cara de espanto pela pergunta, mas respondeu: “Você não está vendo? As gazelas estão se reproduzindo”. Sem entender, Ernst replicou: “E o que tem isso?”. Após outra cara de espanto, o homem respondeu: “Significa que vai ter chuva!”. Ainda sem entender, o suíço desistiu de fazer perguntas. Depois soube que na Namíbia, um país muito seco, há anos em que a chuva é bastante escassa. As pessoas da aldeia sabem que um ano será chuvoso quando as gazelas começam a cruzar, pois, de alguma forma, esses animais sabem que irá chover e que haverá abundância de alimentos (pois são herbívoros), então se reproduzem. Ao contrário, nos anos em que a chuva será escassa, são os leões que se reproduzem, pois não haverá alimentos suficientes para as gazelas e sua população precisa ser controlada pelos seus predadores. Então, os leões, em maior número, comem as gazelas menos aptas a sobreviverem na escassez de alimentos.

De acordo com essas histórias, pode-se apreciar a beleza das relações ‘predador x presa’, e como elas se dão no sentido de manter o equilíbrio dinâmico da natureza. O rato só se torna presa da cobra quando vê prejudicada sua função no ecossistema, pela escassez de alimentos (ou água). Assim, se encaminha para alimentar seu predador. Dessa forma, o rato e a cobra cumprem seus papéis no ecossistema, e a relação predador x presa agora pode ser vista sob um novo paradigma, baseado na cooperação e no amor incondicional entre as espécies. Na Namíbia, podemos ver mais uma relação predador x presa sob o aspecto dessa cooperação e amor incondicional: nos anos de abundância de alimentos para as gazelas, a população de leões permanece a mesma, mas quando os alimentos para as gazelas se tornam escassos, os leões se reproduzem para controlarem a população de gazelas e manter o equilíbrio do ecossistema.

Desta forma, se nota que as relações são baseadas na cooperação e auxílio mútuo, com cada espécie cumprindo seu papel harmonicamente no momento oportuno. É importante frisar que as relações ‘predador x presa’ não mudaram, essa é somente uma nova forma de enxergá-las...

As formigas são as jardineiras naturais, pois realizam a poda das plantas que não estão desempenhando bem seu papel no ecossistema. Se seu pé de laranja está sendo cortado pelas formigas, é porque a planta não está num local adequado.

A idéia da agrofloresta se baseia na observação da natureza: numa floresta densa, as plantas nascem todas bem perto uma das outras, a ponto de não conseguirmos penetrar nesses locais sem o uso de um facão. Na formação natural de uma floresta (ou na recuperação), há as plantas que nascem antes de todas as outras, que nutrem o solo, fazem sombra e preparam o espaço para que outras espécies vegetais nasçam posteriormente; há também, espécies que se desenvolverão no local após este começar a ser visitado por determinados tipos de animais, que são dispersores de sementes. Geralmente, na sucessão natural, as plantas são separadas em pioneiras, primárias e secundárias, sendo as pioneiras as primeiras que surgem no local; portanto, são as menos exigentes em termos de sombra e nutrientes no solo; as primárias vem em seguida, e as secundárias são as que se desenvolverão por último, após anos, talvez décadas, requerendo um ambiente muito mais equilibrado e complexo (são plantas características de florestas em seu clímax). O que Ernst fez para recuperar sua área foi realizar plantações respeitando as características de cada espécie, e hoje vive da extração de produtos de seu terreno, principalmente o cacau, de altíssima qualidade. Tudo isso, claro, sem o uso de agrotóxicos ou fertilizantes, sem curvas de nível, pois elas não existem na natureza, e talvez o mais interessante: sem irrigação. Ele interfere somente para acelerar um processo de regeneração natural da floresta.

Nós, ‘Homo sapiens sapiens’ (aliás, quanta arrogância neste nome, não?), que gostamos de nos ver como um ser à parte no ecossistema, somos também animais, e possuímos uma função na natureza, ou, pelo menos possuíamos antes de perdermos nossas raízes. Segundo Ernst, nossa função no ecossistema é de formadores de clareiras, ou seja, formamos clareiras em florestas. Agora que já possui uma área totalmente florestada, Ernst pode cumprir sua função no ecossistema. Ele derruba uma área de sua floresta, de um hectare (100m x 100m), por exemplo, e faz a plantação de uma nova agrofloresta, colocando verduras, raízes como mandioca e inhame, grãos, árvores frutíferas, árvores para extração de madeira, etc., tudo junto, num espaço bem reduzido. É assim que obtém seu alimento.

Algo interessante que Ernst nos disse foi que uma parte da recuperação de sua área foi feita com espécies exóticas, o que é exatamente o oposto do que dizem os pesquisadores e cientistas. Segundo eles, o reflorestamento de uma área só deve ser realizado com espécies nativas, ou seja, espécies que pertencem ao ecossistema original da área, como Mata Atlântica, floresta Amazônica, Cerrado, Caatinga, etc. Isso faz todo o sentido, já que as espécies exóticas são de outros ecossistemas, até de outros países, e não recuperarão o ecossistema original da área. Porém, o que aconteceu no caso do Ernst foi: ele plantou as espécies exóticas, e elas foram sendo substituídas por espécies nativas, naturalmente, através da dispersão de sementes realizada pela fauna da região, atraída pela vegetação. Esse resultado prático pode revolucionar a recuperação de áreas degradadas e o interessante é que tudo está documentado e será disponibilizado na internet, segundo o suíço, no site.

Sim, são idéias que vão contra o senso comum. Mas vindas de Ernst, com a experiência e com os resultados que ele tem para mostrar-nos, elas merecem no mínimo uma análise cuidadosa. Vem surgindo um novo tempo, e é melhor que nós, ‘sapiens sapiens’ comecemos a usar toda nossa ‘sapiência’ para cooperarmos entre nós e com as outras espécies... melhor que cavar nossa própria cova.

Bibliografia:

Documentário: Neste chão tudo dá (22 minutos) http://www.youtube.com/watch?v=dvv85bE_7HY

Site de Ernst Gotsh: http://www.agendagotsch.com/

Livro: Colapso, de Jared Diamond. O autor estuda o colapso de civilizações e sociedades do pasado e traça comparações com nossa sociedade atual, globalizada e interdependente.

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